UMA ONDA NO AR
Na obra de Helvécio Raton a realidade e a ficção se confundem. No filme, fatos verdadeiros se misturam com o imaginário e seus personagens incorporam, com liberdade, personagens reais. Isso somente é permitido por se trata história verídica de uma rádio “pirata” de Belo Horizonte que teve início nos anos 80.
O filme conta a história da rádio favela, uma rádio livre, com uma programação diferenciada que pretendia ser uma voz que falasse da comunidade para a comunidade. Numa das comunidades de Belo Horizonte quatros jovens amigos decidem criar uma rádio, na qual pudessem expressar suas opiniões, seus pensamentos e lutar contra as desigualdades social e a criminalidade local. Isso se traduz nas palavras de Jorge o personagem central se referindo à antena de rádio. “... isso poderia ser uma metralhadora disparando palavras consistentes, falando para o povo da periferia; os caras podem usar uma metralhadora e a gente podia usar uma antena”. “a gente precisa de uma rádio para a gente falar o quiser e pra todo mundo escutar, uma rádio só nossa”.
Contando com ajuda de Ezequiel (Adolfo Mouro), estudante de eletrônica, Brau (Benjamin Abras), um poeta, e Roque (Babu Santana), Jorge consegue colocar no ar a emissora que mais tarde se chamaria “a voz livre do morro”.
O longa metragem Uma onda no ar evoca uma maneira diferente de ver a favela, em que a violência, tráfico de drogas e crimes estão presentes, mas não de forma exclusiva. É interessante notar durante o filme como são apresentadas a redes sociais ali existentes e as diversas formas de atuação de seus moradores.
Por diversas vezes, a Polícia Federal destruiu todos os equipamentos de áudio da rádio, impedindo que ela entrasse no ar. Mesmo assim, os jovens não desistiram, e prosseguiam na luta pela emissora comunitária que serviria de porta-voz da comunidade. Mostrando seu compromisso em manifestar suas opiniões.
Se tomarmos como pressuposto a definição de estigmas como relacionados à idéia de estagnação e mobilidade, podemos dizer que os estigmas aparecem justamente nos lugares em que há tentativas de deslocamento. Um morador de favela que se integre ao mundo do tráfico de certa forma cumpre aquilo que é esperado dele; um morador de favela que desenvolva o projeto de uma rádio é visto como fora do lugar a ele reservado.
Esse contraste inicial nos revela as pontuações possíveis no filme em relação aos estigmas sociais: tomados como estigmas de reforço ou de transposição, temos que quando permanecem onde supostamente deveriam estar os estigmas não incomodam (e cumprem seu papel como demarcadores de diferenças entre os diversos grupos sociais). A partir do momento em que se deslocam e passam a ocupar posições antes insuspeitadas, surge o desconforto. A questão da pobreza e suas figurações simbólicas e formas narrativas nos parece apropriada para pensar os processos de deslocamento dos estigmas sociais.
Isso nos faz lembrar do texto de Paulo Freire “o compromisso do profissional com a sociedade” em que ““ não é possível um compromisso autêntico se, àquele que se julga comprometido, a realidade se apresenta como algo dado, estático e imutável. Se este olha e percebe a realidade enclausurada em departamentos estanques”.
Em Uma onda no ar, temos a impressão de relações sociais que apontam para mudanças de espaço. O personagem Jorge que assim como todo ser humano é mutável. Ele realiza seu sonho por opção e não por acasos. Ele ver a existência de outras possibilidades, além da inserção no crime organizado ou subemprego, quando há mobilização e união de esforços, ainda que seja algo difícil ou restrito. Percebe a possibilidade de superação de dificuldades ou de ação mesmo em um ambiente hostil. Jorge busca transformar as relações na favela por meio da informação e do fortalecimento de relações comunitárias.
É um sonho coletivo; que se complementa com o desejo de amigos e se efetiva com o apoio e a participação da comunidade.
O desejo de Jorge montar uma rádio é de ir contra aquilo que as rádios comerciais transmitem sem conhecer as realidades das favelas. De acordo com Jorge elas “só trazem merda, coisas inúteis, palavras que não valem nada.” As rádios comerciais trazem produtos consumidos pela favela, mas que não apresentam uma fala própria daquele lugar. Elas não são capazes de fazer uma leitura dessas realidades. Somente aquele que vive nesses locais estar habilitado pra fazer essa leitura mais concreta.
De acordo com Paulo Freire no texto “a importância do ato de ler”, a leitura deve ser feita de forma concreta, ou seja, ter significado no mundo real e no do leitor, que deixará de ser objeto da leitura para tornar-se o sujeito ativo na construção do significado, seja ele de caráter explícito ou não. Para isso, devemos aprender a ler de maneira eficiente para que ambos - leitores/textos/autores interliguem-se em processos de leitura eficazes.
Uma leitura concreta, por sua vez, tende a ser uma análise crítica e interpretativa do ato de ler, compreensão esta que não se esgota na decodificação pura da palavra ou da linguagem escrita, mas que se antecipa e alonga-se na previsão do que está sendo lido. Como disse Freire (2005, p.11), “a leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele”.
A imprensa de massa exerce durante o filme um papel ambíguo: em que contribui na divulgação da prisão do protagonista, mas que não abre grande espaço para o cotidiano do trabalho desenvolvido, ainda que haja uma repórter interessada no tema, e a própria rádio, como um lugar que permite levar a voz de uma comunidade silenciada pela segregação física e social.
A rádio favela dirigida por Jorge apresenta rede de relações entre veículos como forma de mobilização contra a ação policial e a aplicação de leis consideradas injustas pela comunidade.
Em contrapartida, Uma onda no ar apresenta uma variedade maior de relações a serem observadas nesse contexto e ambiente relacionados à pobreza, as quais conferem maior multiplicidade de elementos para análise e enfocam outras formas de relações decifráveis, além daquelas associadas à criminalidade, ao tráfico e ao subemprego – que, embora presentes, não marcam a tônica da enunciação.
A partir da criação e manutenção de uma rádio com objetivos comunitários, da mobilização de diversas pessoas em torno desse objetivo e da participação da população local na sua manutenção e viabilização, este filme demonstra que, não é por morar em um ambiente de pobreza que aquelas pessoas estão fadadas aos estigmas a elas associados de forma intransponível. Elas detêm o poder de deslocamento, da ocupação de outros lugares sociais, e ainda, que há espaço para valores diferentes daqueles ditados por um sistema dominante, ainda que em disputa constante.
O filme demonstra ainda que, mesmo permanecendo no ambiente da favela, aquela é uma população que, pela organização, consegue superar os lugares aos quais supostamente deveria se restringir, indicando para o valor da mobilização e dos laços comunitários e objetivos de grupo como elementos que conferem poder de ação sobre seu meio, sem a necessidade de associação a grupos ligados ao poder do tráfico, como estigma e único caminho daqueles que habitam as favelas.
“... o homem é um ser histórico e somente ele é capaz de comprometer-se. Há a necessidade de que o homem seja empreendedor “com a capacidade de atuar e refletir... transformar a realidade de acordo com finalidades propostas pelo homem” (Freire, 17).
Outro questionamento interessante é o fato de que a sociedade em si foi criada pelos homens e a mesma dificulta-lhes de atuar. Isso é contraditório. “Quando se impede um homem comprometido de atuar, os homens se sentem frustrados e por isso procuram superar a situação de frustração” (Freire, 18).
Em Uma onda no ar, a panorâmica da favela e sua localização como parte de um cenário maior da cidade, além dos planos gerais mais abertos, aponta para sua interação com os demais ambientes da cidade, e para a abrangência de relações que ali podem ser articuladas.
ALGUMAS REFERÊNCIAS PESQUISADAS
FREIRE, Paulo, A importância do ato de ler: em três artigos que se completam –São Paulo: Autores Associados: Cortez, 1989.(Coleção polêmicas do nosso tempo; 4)
_____________. Educação e Mudança. 3ª. Ed. Paz e Terra: 1981
UMA onda no ar. Direção Helvécio Ratton,Produção: Simone Magalhães Matos Interprétes: Alexandre Moreno, Adolfo Moura, Babu Santana, Benjamin Abras, Edyr Duqui,Priscila Dias, Renata Otto, Hamilton Borges Walê, Tião D’Ávila. Roteiro: Jorge Durán e Helvécio Ratton. Belo Horizonte: Quimera Produções,2002. DVD (92min),son,color.
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