DOCUMENTÁRIO: UMA FICÇÃO DIFERENTE DAS OUTRAS?
Consuelo Lins
LINS, Consuelo “O cinema de Eduardo Coutinho: uma arte do presente”. In: Ivana Bentes (org.), Ecos do Cinema, de Lumière ao Digital. Rio de Janeiro: UFRJ, 2007.
Em meios às imagens de todos os tipos que constituem o mundo contemporâneo, as imagens do documentário apresentam, de maneira mais evidente, uma tensão que encontramos em diferentes domínios: tensão entre a realidade e a ficção, entre a verdade e o falso, entre a imagem e o real.
Há um contraste radical entre as certezas do senso comum em relação à noção de documentário e sua fragilidade nas dimensões teóricas. Os Argumentos implícitos no senso comum encontram sua origem na oposição histórica entre os dois pólos do cinema: Lumière (documentário) versus Méliès (Ficção).
A natureza paradoxal da imagem
O aspecto figurativo próprio à imagem fotográfica, sua semelhança empírica e sua precisão na reprodução técnica estão na base de sua força documental, do mito da subjetividade e de sua fascinação.
O cinema de ficção vai ter de esperar muitas décadas para viver, nos anos de 1960, uma questão que a pintura já tinha deixado para trás. E o documentário vai ter de esperar mais ainda para perceber os riscos da confusão entre o visível e o real.
O empirismo da imagem, que constitui o suporte essencial da equação visível = real, compõe, na verdade, uma espécie de grau zero de imagem, e prova, no máximo, que alguma coisa esteve diante da câmera; Além disso, no cinema, a imagem está sempre em movimento, ela é imagem-movimento, e os dados imediatos da imagem só existem agenciados pela narração, daí a multiplicidade de sentidos possíveis.
A imagem é “ontologicamente falsa”. Como diz o crítico fracês A. Bergala (1983), a reprodução pura e simples não garante nenhuma autenticidade histórica. Ela pode sempre e esconder outra coisa, ser sempre falsificada.
Interessa a diferentes poderes manter essa equivalência real = visível que constitui uma solida “ideologia visível” por causa do enorme potencial de manipulação das imagens, e portanto, da realidade, que essa característica da imagem propicia; A conscientização acerca do aspecto “ontologicamente falso” por uma parte critica, da teoria e da pratica cinematográficas contribuiu pra uma crise radical na própria noção “documentário”, pois esta forma de cinema sempre se apoiou na imagem concebida como uma boa representação do real.
Em nome do real
O cinema documentário esteve desde a sua origem. Por volta dos anos de 1920, envolvido com uma forte ideologia realista, em uma crença de que a imagem em movimento tinha uma função nobre a cumprir: a de representar; O documentário coloca, desde o inicio da sua historia, questões referentes ao real, à representação, à objetividade, à verdade da representação, ainda que esses conceitos tenham tomado, nos diversos priodos, conotações diferentes.
O documentário é uma ficção?
O final dos anos 1960 marca para o documentário o inicio de uma crise que abala grande parte de seus postulados sobre os quais essa forma de cinema se apoiava há muitas décadas. Muitas das teses se André Bazin foram profundamente criticadas, a começar pela equação objetiva da câmera = objetividade da representação.
A objetividade técnica não é possível, a neutralidade não existe, a imagem cinematográfica “justa” também não, a subjetividade está sempre presente. Esses eram os debates, marcados pelo contexto marxista e althusseriano de então.
Outro golpe que sofre essa tradição pode ser resumido na celebre frase de Christian Metz: “todo filme é um filme de ficção”; As transformações sofridas pela imagem automática em movimentos como o da nouvelle vague se fazem sentir a torna-se uma banalidade dizer que “ há documentário em toda ficção e ficção em todo documentário”.
A frase de Godard- “todos os grandes filmes de ficção tendem ao documentário, como todos os grandes documentários tendem a ficção“; Outra frase ressonante é do teórico francês Roger Odin, que diz que “todo filme de ficção pode ser considerado, de um certo ponto de vista, um documentário.
De um lado, a ofensiva é contra a naturalização da imagem documentária, nos seus mais diversos aspectos. A idéia de que a realidade já está desde sempre enredada em um sistema de significações preestabelecidas ganha força. Todos esses aspectos colocam radicalmente em questão a oposição ate então mais ou menos aceita entre ficção e o documentário.
Movimentos documentários
Há de ressaltar diferenças importantes entre esses dois domínios cinematográficos (Ficção e documentário). Distinguimos desde o surgimento do documentário varias maneiras de praticá-lo – documentário clássico, cinema direto, cinema verdade - pelos discursos dos cineastas, da critica e da teoria do cinema, das instituições, do público.
Passou-se de uma concepção a outra e de uma técnica a outra, acreditando-se em um caminhar em direção a um acréscimo ao real; Assim o “objeto” documentário existe, é fruto de um conjunto de praticas e discursos, e difere sim, neste campo a ficção.
Há como afirma o americano Bill Nichols, uma construção continua desse pseudo –objeto, o que implica um deslocamento de perspectiva no que diz respeito a essa forma de cinema: em vez de negar, por um lado, a própria existência do documentário ou, de outro, afirmar a sua essência , em vez de criticar ou argumentar em favor de posições adotadas, parte-se das próprias obras e do conjunto de práticas que criam os movimentos definidos sucessivamente como documentários.
Essa abordagem leva a Nichols a estabelecer uma classificação com bases nos filmes, técnicas, convenções, metodologias, termos e categorias que produzem e sustentam essa forma de cinema desde os anos 1920. Expositivo (documentário clássico), de observação (cinema direto), interativo (Cinema verdade) e reflexivo.
Nos dois primeiros modos – expositivo e de observação – de uma imagem concebida como evidencia do mundo, representação privilegiada do real. O modo interativo já revela uma certa desconfiança em relação à crença na imagem, desconfiança que se radicaliza no modo reflexivo, que afirma a não-autenticidade da imagem e do som.
A classificação de Nichols não deve ser entendida “literalmente”. Tem uma função essencialmente didática, que nos permite verificar as principais questões, as posturas éticas e as opções estéticas que fazem o que chamamos de historia do documentário.
O que nos parece claro hoje é que a prática, a critica e a abordagem teórica contemporânea do documentário deve enfrentar e talvez ter como ponto de partida certas condições que foram aplicadas por vários filmes do modo reflexivo, tais como:
1. Todo documentário é um artefato construído por blocos de espaço-tempo, fabricando seus efeitos, impressões, sensações, pontos de vista, visões de mundo.
2. No entanto, por mais artificial que seja a imagem automática há sempre um “grão do real” que adere à imagem e ultrapassa toda figuração (= natureza paradoxal)
3. Não há técnica, metodologia ou estética mais apta que outras para captar o real e o mundo. A questão, aliás, está para alem de uma imagem “justa”
4. O ato de filmar implica uma metamorfose daqueles que filmam e dos que são filmados, que pode ser assumida ou disfarçada por convenções estabelecidas.
5. O documentário não tem uma essência realista e não é necessariamente mais próximo da realidade do que da ficção. Ele foi criado a partir dessa crença, que é na verdade uma invenção, produzida por praticas e discursos específicos. Isso não impede que essa forma de cinema tenha aberto belas vias para o cinema em geral.
A força do real ou crença do gênero – mas, sobretudo de certas condições históricas que envolvem a prática documentária, que tentamos identificar aqui. A problematização desse domínio aliada a uma tecnologia leve e de baixo custo possibilitam a experimentação de novos caminhos, diferenciando o documentário de pratica dominante de ficção, pouquíssimos ousada esteticamente e dependente de grandes produções.
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